SALVADOR DALI - METAMORFOSE DE NARCISO
Uma interpretação da tela pintada por Salvador Dali, texto extraído do livro "Holomovirento:Espelho d"Alma" de autoria Melinda Garcia
Metamorfose de Narciso Quem é Narciso? . Ele não sabe quem é. Não revela sua face, não reproduz seu rosto no espelho d'água. Retratado tão fragmentado, mais parece um amontoado de pedras ou ossos. Seu peito cavernoso traduz o vazio interior. Curvado sobre si próprio em estado de concentração interna, é tudo que requer o momento. Sua posição fetal representa o regressus ad uterum, o retorno ao útero, à essência do ser e, numa relação direta, condiz com o local onde está projetado, a caverna, símbolo do local de segundo nascimento. Retratado com longos cabelos ao vento, mais se assemelha à figura de uma mulher. Como diria Jung, será sua ânima? Sua reserva feminina? Alma pela qual é perpétuo apaixonado? (Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem: intuições proféticas, receptividade ao irracional, capacidade de amar, relacionamento com o inconsciente).
Mergulhados n'água (símbolo do inconsciente, do indiferenciado), estão elementos de profundo significado: não só sua face, mas igualmente suas mãos, pés, e seus genitais. Tal fato está anunciado simbolicamente que grande parte do seu microcosmo humano, submerso n'água, está sem consciência de si, o que acarreta um distúrbio inconsciente na função deste sistema de órgãos e na sua inervação vegetativa, finalizando na despersonalização de Narciso, onde o corpo não é percebido como um todo unificado. O cerne da problemática de Narciso reside, principalmente, na função dos genitais inconscientes, pois a função do orgasmo é, segundo W. Reich, a medida do equilíbrio psico- físico. É na entrega última involuntária, la petite mort, -pequena morte, como diriam os franceses, onde o ego absorve-se. Os bloqueios inconscientes acarretam uma estase (não confundir com êxtase), um retraimento da energia biológica que fica presa e em parte sofre um deflexo, um desvio e, no caso de Narciso, é redirecionada para a imagem externa de seu próprio ego, para a imagem ilusória de si que contempla apaixonado. Assim, grande parte de sua energia é eternamente, em vão, desperdiçada. Narciso, cativo à beira do lago, passa anos sem evoluir, separado de si, dividido, fragmentado. Ameaçado já de desintegração ele vê que não pode mais permanecer. Mas, porque dedica atenção completa e amor intenso ao objeto amado, lhe sobrevém lampejos de consciência e de visão. A consciência adquirida contém em si o germe da metamorfose; - transformação e evolução.
Para sacrifício e morte de seu personagem alienado, nada em si mesmo, apenas idealização, Narciso cede ao conflito, assume de corpo e alma o objeto amado, entregando-se aos apelos de sua paixão, e, num ato de purificação, de regeneração, mergulha nas águas do lago. Ao convergir terá incorpora em si aos elementos ali dispersos. Sua morte é sua metemorfose. A réplica metafísica de sua transformação, está simbolizada pela mão (símbolo de posse) que sustenta o ovo (símbolo do yin e yang). A mão é idêntica à imagem anterior de Narciso. A mão projetada para fora do lago, vemos que incorporou nova base, a parte inferior do o seu reflexo no espelho do lago. As formigas circulando simbolizam as novas energias que foram liberadas pela cura dos instintos sexuais reprimidos, que voltam a circular, o que causa uma sensação de pinicadas ou formigamento nos órgãos ou sistema de órgãos. Tal desbloqueio psicológico dos instintos está também representado pelo cão saciando sua fome. A fome canina em seu simbolismo é associada à avidez do apetite sexual.
O verdadeiro Narciso, livre de sua fragmentação, renasce novo em outro plano. Podemos vê-lo ao fundo, sobre o pavimento preto e branco, sobre o pedestal. Sobre os próprios pés, consciente, ele adquiriu base. Partindo do crescimento orgânico, ele se olha, se toca, para seu próprio prazer e glória. Novas estruturas internas e externas advindas da nova consciência adquirida tecem, ao mesmo tempo, o dentro e o fora, o que renova paisagem à sua frente e à sua volta. Narciso evolui enfim para um novo nível de visão, à partir de um novo microcosmo.
O mito do poeta italiano Ovídio (43aC-18dC) conta que ao nascer, suas irmãs preocupadas com o futuro de Narciso, consultaram o cego Tirésias, um adivinho. O cego profetizou: Sim, Narciso terá vida longa, desde que não se conheça nunca...