Mandala das idéias surreais
Joel Macedo Jornalista, psicólogo, especialista em ciências da religião.
Escultora faz uma viagem holística
Uma escultora de fama internacional resolve colocar em livro os afetos e percepções que não couberam em seus bronzes, metais, concretos lapidados e fibras de vidro. As incursões pela psicologia, pensamento indiano, teologia e física moderna geraram em Melinda Garcia um “excesso de conteúdo”que precisou ser expresso de outra forma: “um livro com obra de arte”, no dizer da própria autora.
O surrealismo de Salvador Dali foi escolhido, então, como pano de fundo para Melinda passar suas descobertas, numa mandala de idéias provocante. São cerca de 12 telas de Dalí - algumas obras-primas, como O fantasma de Vermeer – que recebem interpretações pessoais da autora, que visita inúmeras fontes culturais, místicas e de pensamento: do sufismoislâmico ao evangelho de São João; do budismo à árvore sefirótica da cabala hebraica.
Tomando como paradigma a percepção da realidade como holomovimento, pinçada do físico David Bohn (cada parte contem otodo e o todo está em toda parte), a pintura do gênio catalão recebe um olhar microscópico, em que cada conjunto de símbolos (e no surrealismo eles transbordam) é manejado com habilidade pela escritora, que trafega com rigor admirável por tradições aparentemente tão díspares que, no holomovimento de Melinda, dissolvem-se em sua dialética para encontrarem-se numa síntese dinâmica e cativante.
Na análise de “Metamorfose de Narciso”, recorre as duas teorias reichianas – a duas couraças musculares que bloqueiamo fluxo da energia vital e a da potência orgástica que permite a liberação do instinto - associando-as ao tantrismo oriental, onde o instinto – em forma de energia Kundalini – é identificado como cérebro inferior ou cérebrocobra, representando analogamente o inconsciente da psicologia profunda.
A autora atravessa o mito de Narciso evitando, profundamente, tocar em Freud em cujas oscilações rochosas poderia ter tropeçado, comprometendo a lisura de suas tarefas. Até porque o gênio de Viena ao ser apresentado à tela da “Metamorfose” pelo próprio Dali desdenhou de seu conteúdo, atribuindo sua existência ao modismo da psicanálise.
Na abordagem de um Dali pós-surrealista, de 1956, Melinda enxerga numa andorinha a presença do Espírito Santo animando a natureza morta; e dedica várias páginas de seu esforço reflexivo, intenso e extenso, ao confronto de teorias da física moderna, dialogando com Bohn, Einstein, Hawking, Renée Weber e citações do teólogo budista D.T. Suzuki.
O holismo que sempre pautou seu trabalho nas artes plásticas, Melinda transporta para seu volume de estréia e o resultado é uma obra cult com muitos diferenciais, a começar pela distribuição, apenas pela internet, e acessível como livro digital, sendo esta segunda opção talvez mais recomendável, uma vez que o produto industrial – em papel – é mal confeccionado e com pouca resistência de manuseio.
O subtítulo “Espelho D’alma” refere-se à Gala, a legendária amada do artista espanhol, que, na interpretação da autora, “foi o principal espelho onde Dali via refletida sua alma apaixonada e onde pouco a pouco se encontrava”. Mas foi no espelho da obra de Dalí (e de Velásquez, Klee, Picasso e Kandinsky, também visitados) que Melinda, ao debruçar-se, viu refletida a própria alma, em processo de parto e transmutação.
Intelectualmente ousado e experimental ao extremo, Holomovimento emerge como um desafio estimulante para os que se propõem a fazer do pensamento e da arte uma aventura; e, do conhecimento, um exercício de musculação para os neurônios.