Arte pela Paz Relembrando Picasso e Dali
Exposição e lançamento de livro de Melinda Garcia

Nosso tempo tem sido caracterizado pela especificação, potencializando a separação das ciências e, também, pela fragmentação do pensamento, prevalecendo o olhar estritamente prefigurado pela inteligência masculina. Como um anatomista que disseca um cadáver, os físicos fragmentaram a matéria em busca da substância essencial, do conteúdo fundamental. Nesta procura, nada encontraram de material, apenas pacotes de energia. Porque não dizer: encontraram a matéria em seu estado transcendente.

No avanço das pesquisas, no mau uso em direção à fragmentação, da fissão nuclear criou-se a bomba atômica; o homem apoderando-se da energia fundamental para a destruição sem precedentes.

A Arte, antecipando a revolução cientifica, fez o mesmo na pessoa de Picasso. De forma revolucionária e precursora, Picasso fragmentou a imagem, criando a importante obra que inicia o movimento cubista, "Les demoiselles d'Avignon" (19O7). Após realizar centenas de estudos através das imagens em "cubos", o artista transcende a própria materialidade para atingir o resultado final, decantar sua imaterialidade! Compreenderemos isto, se aplicarmos à tela, sua máxima: "Cada objeto que toco se revitaliza e se torna a encarnação do meu drama interior". Esta declaração nos autoriza a afirmar que a tela Les demoiselles d'Avignon é uma projeção inconsciente que reproduz, numa configuração fragmentada, multifacetada e espelhada, o próprio Picasso, numa multiplicidade de auto-retratos do seu eu interior. Assim, as quatro donzelas simbolizam a transfiguração encarnada da psique do artista, uma projeção das quatro faces da sua alma ou anima. No dizer de Jung, a anima é quaternária, são quatro os estágios de sua evolução ("entende-se por anima, os aspectos femininos da psique masculina: as intuições proféticas, a capacidade de amar e o relacionamento com o inconsciente", Jung sinaliza).

Uma vez que o artista está preso em sua própria obra - como foi revelado pela mitologia - Picasso revitaliza as máscaras africanas com as quais se travestiu, como a inspiração ideal para transfiguração da sua própria irracionalidade. Nesta manifestação, lançou mão das máscaras para dominar o caráter irracional e animal dos instintos internos que o artista, neste exercício espelhado de seu drama interior, exorciza e transcende. Lembremos a psicologia de Wilhelm Reich: "a imagem do instinto que surge, quando no tratamento das análises de caráter, é sempre revestida por algum animal ou monstro". O instinto humano é por si só animal! Contudo, comparemos a figura central ao seu Auto-retrato, pintado na mesma época onde.a semelhança é evidente. É na quinta figura central da tela, que a imagem de Picasso aparece com força total, pois domina a forma ideal: totalidade quintessenciada. No quadro Les Demoiselles...a comunhão com a alma é restabelecida, realiza-se o casamento masculino x feminino como caráter complementar da experiência entre o profano e o sagrado. As frutas presentes, no-lo indicam, pois simbolizam a maturidade e, por sua forma esférica, a totalidade. Picasso, dizia: "pintar é libertar-se". Partindo da fragmentação, criou união; no arremate dos seus processos, atingiu a síntese, tornando-se uma dimensão unificada e fundando o Cubismo.

No mesmo movimento interno se desenrolou a obra de Salvador Dali. O artista utilizou a pintura como instrumento catártico para interrogar o próprio inconsciente, quando reproduziu, através do Surrealismo, os mais fantásticos retratos de seus conflitos internos. Soube, como ninguém, manipular máscaras, descartando-se delas quando realizou as telas O Sonho (1937) e Auto-retrato mole com fatias de bacon assado (1941). Estes mergulhos íntimos o levaram vivenciar a mais terrível das ameaçadoras tentações, como em Tentação de Santo Antão (1946). Vemos no exercício desta tela o desejo de comungar, de incorporar a alma, de retornar à unidade fundamental! Impossível, sem antes enfrentar, assimilar e transcender o animal-monstro interior; não..., não sem antes purificar o caráter instintivo da natureza animal existencial a encobrir-lhe o eu primordial, a natureza essencial, o ser ontológico. Metafísico, não? Tal é a exigência da ordem cósmica feita ao artista ou a aqueles que desejam incorporar em si o microcosmos e assumir o microtheos (do grego, pequeno deus). A partir da tela Tentação de Santo Antão, Dali é vitorioso na comunhão; é "Salvador" da sua alma. Libertou seu eu divino triunfando em novo estilo: o Misticismo! Após o qual abandonou o Surrealismo, identificando este seu passado de fragmentação e ceticismo. Dali realiza: "Cristo de São João da Cruz em 1951 e inúmeras outras obras tendo Cristo como tema. Finalmente em "Auto--retrato: Dali nu" (1954), nu e liberto, Dali assume a verdadeira identidade no êxtase contemplativo, alcançando a paz nas delícias do paraíso perdido!

Possuímos as sementes do divino mas, admitamos: Ninguém faz este retorno de ascensão do espírito, sem passar por Cristo: "Eu sou a porta, aquele que entrar por mim será salvo". (evangelho de João 10.9) ; "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim". (João 14.6). Jesus Cristo, Deus encarnado homem, por 40 dias e 40 noites, enfrentou as tentações no deserto. Nele, animus e anima se harmonizam e se expressam com perfeição! Nele, a mulher e o feminino são incluídos no projeto do Reino de Deus, prenunciando a arte cubista e surrealista do século XX e o holomovimento do século XXI. Após reflexões sobre a ambigüidade de nossa existência humana, da qual somos constituídos em dualidade metade animal, metade divino, concluímos que amar é o substrato que depura a animalidade, transcende a irracionalidade, liberta da escravidão! A Arte nos auxilia neste caminhar, possibilita canalizar para a luz as energias geradas pela usina atômica do nosso psiquismo, exorcizando o "fuher" em cada um de nós, como fez Picasso com as máscaras africanas em As donzelas de Avignon e em Guernica, ou sobretudo Dali em Tentação de Santo Antão (Eros sobre Thanatos , Simbólico sobre Diabólico) e em Espanha (1938). Esta tela retrata o verdadeiro sentido da guerra, o que se esconde por detrás dela; pois a figura feminina da Espanha é definida pelo contorno das figuras lutando no seu interior. O leão aparece na tela dentro desta perspectiva simbólica, ligada á paixão, ao arrebatamento, ao heroísmo, à cólera; virtudes psíquicas vividas ao nível do coração e que devem ser transmutadas em virtudes ontológicas.

Libertemo-nos, pois, dos tiranos que, como falsos deuses, conduzem ao patriotismo doentio e aos Estados religiosos movidos pelo desejo de matar! Ou...pelo medo de amar! Sim, o medo de amar...amar a verdade, amar a vida, assume várias faces ou máscaras: medo da rejeição, do desconhecido, do confronto consigo mesmo, e nos agarramos às máscaras por puro medo, por pura morte. No medo, está uma sabedoria de Buda: "Por mais que na batalha se vençam um ou mais inimigos, a vitória sobre si próprio é a maior de todas as vitórias". Descobrimos, então, a razão pela qual somos tão corajosos para matar e tão covardes para amar!

Na ilusão de que somos deuses, abandonamos Deus; na ilusão de que podemos TUDO, nos precipitamos à queda!

Mas, existe a Arte, dom divino, sublime auxílio para a criação, evolução e libertação da alma aprisionada, uma vez que criar é amar e amar...por sua vez, é criar! O holomovimento redefine a arte como possível elemento de cura das fragmentações, como prática sem dogmas de religação, reestruturação e purificação das estruturas ilusórias, abrindo a visão para o real. No holomovimento estamos todos englobados, como todos pertencendo a uma só alma, pois, numa só alma, refletem-se todas as demais, e aparece, em essência, o sentimento verdadeiramente religioso que embasa nossa existência.

Melinda Garcia